Opinião: O Avô Sábio, por Cristina Sá Carvalho

 

O Papa Francisco disse de Bento XVI que ele era o Avô Sábio que tínhamos lá em casa. Manoel de Oliveira também pertence a essa rara categoria humana, pessoas que vivem com fito e deliberação, empregando ideias, forças e tempos na obra de construção de uma família humana melhor e mais profunda, criando, cuidando, guiando e educando, gerando vida em abundância.

A morte de Manoel de Oliveira trouxe-me à memória o filme que guardei do seu encontro com Bento XVI e ao qual gosto de voltar com regularidade. A encenação, elegantemente discreta, oferecia aos protagonistas a possibilidade de brilhar sob uma luz perfeita. O cenário, que reproduzia a obra de Calapez na entrada principal da Basílica da Santíssima Trindade, em Fátima, cumpriu primorosamente a função, emoldurando o encontro sem se sobrepor aos personagens, numa parceria ideal com a banda sonora. Apesar da elevada qualidade estética com que todos os momentos da visita papal foram programados, este foi o momento mais cinematográfico de um périplo que faria história.

Como previsto, a sessão de encontro do Papa com os actores da cultura portuguesa convergiu para o seu ponto alto, o discurso do grande cineasta. As palavras foram admiráveis, mas dramático e surpreendente foi o desempenho de Oliveira no seu breve papel, os gestos dignos e eloquentes de humildade, partilha e reconhecimento do outro. Havia ali uma verdade imensamente profunda, que certamente só os seus íntimos puderam, plenamente, compreender. E, findas as palavras públicas, toda a genialidade e sensibilidade daqueles dois homens confluiu para um murmurado diálogo que extraordinariamente se comunicou à agitada sala, finalmente concentrada no palco, suspensa da proximidade discreta e significativa dos dois frágeis velhos.

O Papa Francisco disse de Bento XVI que ele era o Avô Sábio que tínhamos lá em casa. Manoel de Oliveira também pertence a essa rara categoria humana, pessoas que vivem com fito e deliberação, empregando ideias, forças e tempos na obra de construção de uma família humana melhor e mais profunda, criando, cuidando, guiando e educando, gerando vida em abundância. Por isso, à revelia das maiorias, envelhecem sábias, mansas, reconciliadas, conscientes, capazes, até, de grandes inovações finais. Explicando que não deveríamos viver “acossados pelas especulações da razão” e as “terríveis dúvidas e descrenças, a que se procura opor a fé do Evangelho que remove montanhas”, naquela manhã, Oliveira ainda foi capaz de mais um gesto magnífico. Pedindo ao Papa a bênção filial, fê-lo comunicando no gesto uma grandeza imensa e terna, filigranada de honestidade e de entrega. Do génio para a humildade, da modéstia à eternidade. Este Avô Sábio habitou a nossa casa comum como um lugar de Beleza e, agora, os Anjos que filmou cantam-lhe aleluias no céu, acompanhando um auto de boas vindas.

 

Cristina Sá Carvalho, diretora do Departamento de Catequese do SNEC

Página 1, da Rádio Renascença, 14.04.2015

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